Falta de mão de obra ou falta de formação?O desafio que a comunicação visual não pode mais empurrar com a barriga

Se você tem empresa de comunicação visual, aposto que essa cena é familiar: vaga aberta, currículo chegando, entrevista marcada. Na hora do “vamos ver”, o candidato não sabe usar trena, nunca subiu numa escada pra instalar uma lona e acha que “plotter” é o nome de um aplicativo. Aí a frase sai quase automática: “Não tem mão de obra no mercado…”

Mas será que o problema é só “falta de gente”? Ou também é falta de capacitação, de trilha de aprendizado e de projeto de formação dentro das próprias empresas?

Eu estou na comunicação visual há mais de duas décadas. Já passei por pintura manual em fachada, ACM, neon, LED, router, impressão digital, corte a laser, projeto 3D… O setor evoluiu muito em tecnologia, mas a forma como a gente forma pessoas não acompanhou esse ritmo. A conta está chegando agora.

O profissional que a comunicação visual exige não é “simples”


Quem vê de fora acha que comunicação visual é “só mandar imprimir e instalar”. A gente sabe que não é assim.
No dia a dia, o profissional precisa misturar:
Noção de medidas, escala e proporção (se errar 2 cm em uma letra gigante, o encaixe já não fecha);
Leitura de projeto e layout (entender o que o cliente aprovou e como isso vira estrutura real);
Conhecimento básico de materiais (ACM, aço, PVC, acrílico, lona, adesivo, polímeros… cada um se comporta de um jeito);
Um pouco de elétrica (LED, fonte, driver, aterramento, segurança);
Trabalho em altura, normas de segurança, EPI;
E ainda atitude: respeito a prazo, cuidado com acabamento, postura na frente do cliente.
Isso não nasce pronto. Não é um curso de fim de semana que resolve. É construção. E é aí que entra a importância da capacitação e do treinamento contínuo.

A tecnologia correu na frente… e a formação ficou para trás


As máquinas ficaram mais rápidas, precisas e inteligentes. Hoje, uma impressora bem regulada faz em uma hora o que a gente levava um dia inteiro pra produzir. O problema é: se do outro lado não tem gente preparada, a melhor máquina do mundo vira gargalo.
Vejo muito isso acontecendo:
Empresa investe pesado em equipamento novo, mas não reserva tempo nem recurso pra treinar a equipe.
Dono quer alguém “100% pronto”, que saiba instalar, soldar, laminar, projetar e ainda atender cliente — e se possível pagando salário de iniciante.
Jovem entra na área querendo mexer só no computador, mas sem disposição pra encarar sol, chuva, poeira de obra e montagem em horário estendido quando precisa.
O resultado é o que todo mundo anda repetindo: “Falta mão de obra”. Só que, se a gente não falar de formação, a frase fica pela metade.

Capacitação não é custo: é seguro de futuro


Treinar gente dá trabalho. Custa tempo, energia e dinheiro. Mas não treinar custa mais caro ainda: retrabalho, atraso, cliente perdido, equipe desmotivada e um ciclo eterno de “contrata e demite”.
Quando a empresa assume que formar pessoas faz parte do negócio, as coisas começam a mudar. E não estou falando de criar uma “universidade corporativa” mirabolante. Estou falando de passos simples e práticos, que qualquer birô ou fábrica pode começar a implementar:
Trilha clara de evolução
Ajudante sabe exatamente o que precisa aprender pra virar auxiliar; auxiliar sabe o que precisa desenvolver pra virar montador; montador sabe o que falta pra ser líder de equipe. Escrito, com critérios objetivos, não só “achismo”.
Treinos curtos e constantes
Em vez de sonhar com um curso perfeito de 40 horas que nunca acontece, faça encontros de 30 a 60 minutos, uma vez por semana:
Como usar trena e nível com precisão;
Leitura de projeto e conferência antes de ir pra rua;
Cuidados com LED e elétrica básica;
Acabamento em adesivo, lona, acrílico;
Procedimentos de segurança em altura.
Manual e checklist da empresa
Cada empresa tem seu jeito de fazer as coisas. Transformar isso em passo a passo escrito (ou em vídeo) diminui muito o erro. Do tipo:
“Antes de sair para instalação, conferir: X, Y, Z.”
“Na chegada ao cliente, fazer: A, B, C.”
“Antes de considerar a peça pronta, revisar: 1, 2, 3.”
Reconhecer quem se dedica a aprender
Não adianta só cobrar. Quem participa, estuda, melhora, precisa sentir que isso tem retorno:
Ajuste salarial associado a degraus de conhecimento;
Bonificação por certificado concluído;
Oportunidade de liderar projetos e treinar os próximos.

Também é nossa responsabilidade como empresários


É claro que existe um problema real de formação no país. A base de matemática é fraca, muita gente sai da escola sem saber usar regra de três ou interpretar um desenho técnico. Tem uma parte da história que foge do alcance individual de cada empresa.
Mas tem outra parte que é nossa.
A gente, como dono ou gestor, não pode terceirizar tudo pra “o mercado” ou pra “os jovens de hoje em dia”. Se o nosso setor é específico — e ele é —, então faz parte do jogo formar pessoas pro nosso tipo de trabalho.
Isso passa por algumas mudanças de mentalidade:
Parar de procurar “super-herói” pronto e começar a valorizar quem tem base de caráter e vontade de aprender, mesmo que chegue cru tecnicamente.
Entender que gente boa não cai do céu: geralmente ela é resultado de anos de construção, dentro de uma cultura que ensina, cobra e apoia.
Aceitar que, se a empresa quer se diferenciar em tecnologia, precisará se diferenciar também em gestão de pessoas e treinamento.

Um caminho possível: transformar a empresa em escola
Não estou falando de teoria. Já vi, na prática, ajudante que mal sabia segurar uma furadeira virar montador de ponta, responsável por projetos grandes, simplesmente porque teve alguém disposto a ensinar e um ambiente minimamente organizado pra isso.
Um modelo simples que funciona bem:
Nível 1 – Ajudante
Aprende organização de oficina, separação de material, noções básicas de segurança, apoio em instalação. Treinos focados em disciplina, cuidado e noções iniciais de medição.
Nível 2 – Auxiliar/Montador Júnior
Começa a executar parte do processo: montagem simples, colagem, furação. Já participa mais ativamente das instalações, sempre acompanhado. Treino em leitura de projeto, interpretação de cotas, noções de elétrica.
Nível 3 – Montador Pleno / Líder de Equipe
Já domina o processo do início ao fim, orienta o ajudante, cuida da relação com o cliente na obra e responde pelo resultado final. Treinos em liderança, planejamento, comunicação.
Perceba que nada disso é “coisa de multinacional”. É disciplina, constância e decisão de tratar capacitação como parte do coração do negócio.

Menos reclamação, mais projeto de formação
Sim, falta mão de obra qualificada na comunicação visual. Sim, o cenário não vai mudar do dia pra noite. Mas entre cruzar os braços e esperar que “o mercado” resolva, e assumir que a gente também é responsável por formar essa mão de obra, existe uma escolha.
Se cada empresa do nosso setor decidir ser, ao mesmo tempo, produtora de projetos e formadora de pessoas, em alguns anos o discurso muda. A gente vai continuar tendo dificuldades — faz parte —, mas vai ter muito mais história boa pra contar do que só a eterna frase:
“Ah, o problema é que não tem mão de obra…”
Talvez o próximo passo seja o contrário: criar orgulho em dizer
“Aqui dentro, a gente transforma ajudante em profissional de comunicação visual.”
Esse é o tipo de apagão que a gente consegue evitar. Mas começa dentro da nossa própria porta.

Referências / Leitura recomendada
CNI / SENAI – Mapa do Trabalho Industrial 2025–2027
https://www.portaldaindustria.com.br/canais/observatorio-nacional-da-industria/produtos/mapa-do-trabalho-industrial-2025-2027/ Portal da Indústria
CNI – Documento técnico completo do Mapa do Trabalho Industrial 2025–2027 (PDF)
https://static.portaldaindustria.com.br/media/filer_public/c0/58/c05898e8-fa8d-4ff1-85cc-d7e4176b606b/documento-tecnico.pdf Portal da Indústria
ManpowerGroup Brasil – Pesquisa de Escassez de Talentos 2025
https://www.manpowergroup.com.br/sobre-nos/estudos/pesquisa-de-escassez-de-talentos-2025 manpowergroup.com.br
ManpowerGroup Brasil – Pesquisa de Escassez de Talentos 2023 (artigo no blog)
https://blog.manpowergroup.com.br/pesquisa-escassez-de-talentos-2023 blog.manpowergroup.com.br
Ondas Impressas – Podcast “A baixa atratividade do setor gráfico e de conversão”
https://ondasimpressas.com.br/tag/empregabilidade/ ondasimpressas.com.br
Sindigraf-RS – Informativo sobre segurança e falta de mão de obra qualificada na indústria gráfica
https://sindigraf-rs.com.br/download/informativos/219/ sindigraf-rs.com.br
FIEAC – “Setor gráfico promove conversa sobre desafios e oportunidades” (inclui menção à falta de mão de obra qualificada)
https://fieac.org.br/espaco-industria-setor-grafico-promove-conversa-sobre-desafios-e-oportunidades/ fieac.org.br
Matéria sobre escassez de talentos no Brasil baseada em estudo ManpowerGroup
https://diariodocomercio.com.br/gestao/escassez-talentos-empresas-brasileiras/ Diário do Comércio

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